segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O suicida

Estava desempregado, as ex-mulheres apertando na cobrança das pensões. Época de crise braba no Brasil, só conseguia bicos e muito raros.
Com o dinheiro da indenização havia comprado uma casa numa cidade dormitório, ao lado da capital.
Vendi o carro e fiz reformas para ter um minimo de conforto.
A mulher se desdobrava nas costuras da malharia.
Asim ia empurrando com a barriga, a vidinha sem horizonte.
Alguém compra o terrreno ao lado e rápidamente constroi uma casinha com material usado.
Kiko, Rosane e um filho pequeno. Muito jovens, fugiram da colônia para se casar.
Ele um alemãozinho mirrado, ex-colono, ex-funcionario do Banco do Brasil, à época empreiteiro de obras (pedreiro). Foi demitido do banco porquê dava empréstimos aos colonos sem verificar a capacidade de pagar, com a inadimplência aumentando dia a dia, perdeu o emprego.
Ela uma loura alta e (muito) bonita, apesar da pouca instrução, chamavam-na de Xuxa pela semelhança.
O dinheiro andava curto pra eles também; a solução foi Xuxa ir trabalhar. Conseguiu um emprego de faxineira em uma grande indústria, a vida deles melhorou um pouquinho.
Com o tempo fizemos amizade, Kiko e Xuxa eram legais, o filho educadinho, ambas as famílias arribadas ali naquele lugar, sem raízes muito fundas, éramos semelhantes.
Então começaram os problemas. Kiko já bebia consideravelmente.
Xuxa destoava das demais companheiras de faxina, era bonita demais, isso chamou a atenção das chefias e também de todos os operários da fábrica.
As cantadas eram diárias. Apesar da fidelidade ao marido, tamanho assédio acabou mexendo com seu ego. Descobriu que tinha um poder em suas mãos, começou a se arrumar melhor, usar perfume, se pintar.
Kiko intuiu que estava correndo riscos, porém, encurralado pela situação financeira, não podia exigir que ela abandonasse o emprego, começou a ter crises de ciúme.
Levava-a até a parada do ônibus, esperava-a no retorno e via os olhares e ouvia as piadinhas e assovios.
Cobrava-a, ela jurava inocência, dizia não ligar para as insinuações dos homens e nem dar trela à eles. Kiko torturava-se, contorcia-se, agonizava, morria e renascia para morrer de novo, estava enlouquecendo tamanho o ciúme. Tinha dúvidas atrozes, desconfiava, via indícios de perfídia nos menores gestos dela. E ela negando.
As bebedeiras recrudesceram, batia nela, batia no filho, depois chorava e pedia perdão.
Ela chorava, porém permanecia fiel, compreendia o medo dele, mas nada podia fazer.
Então chegaram as festas de fim de ano. Ela diz que não aguenta mais as bebedeiras dele, ameaça, se ele não parar, ela vai acabar abandonando-o.
Véspera de Natal, Kiko bebe o dia inteiro. À noite espanca a mulher e o filho, expulsa-os de casa ameaçando matá-los, ninguém vê ou ouve nada.
Dia de Natal, ao sair para o pátio vemos Kiko preparando um churrasco, desejamos boas festas, ele me chama pra tomar chimarrão. Ao chegar na varanda noto duas coisas estranhas, as mãos dele estão inchadíssimas e as pupilas estão tão pequenas que quase não se vêem. Pergunto das mãos ele explica que brigou com a mulher e filho, e os pôs pra fora de casa. Diz que está desconfiando dela e que não sabe o que pode acontecer.
Tomo alguns mates e peço licença, antes de ir Kiko me faz provar o churrasco.
O dia todo Kiko toca músicas de fossa, de dor de corno, no mais alto volume do som.
São 9h da noite, a vizinha do outro lado da casa do Kiko me chama, ouviu gritos desesperados na casa dele e agora o silêncio é sepulcral, a casa permanece aberta, ela teme que algo muito grave tenha acontecido, pede para eu ver, pois sou amigo dele.
Dirijo-me à casa, junto com minha mulher. Entramos, acendemos as luzes, chamamos. Silêncio.
Olhamos nos quartos. Ninguém. O banheiro está trancado. Tenho um pressentimento, digo que vou procurar ajuda, minha mulher pergunta se estou com medo, ele deve estar bêbado, caido no banheiro, que eu abra logo a porta. Digo que não, que vou procurar ajuda.
Consigo que outro vizinho venha comigo. Ao entrarmos na casa avisto a carta sobre a mesa.
Leio, despede-se, pede perdão pela covardia, distribui os bens, faz recomendações sobre cobranças e pagamentos, dedica as flores do jardim para a esposa, determina a doação de seus órgãos, se for possível. Agora tenho certeza, digo ao vizinho que vou arrombar a porta do banheiro, ele concorda, pedalo a porta ao melhor estilo policial....
A porta bate no corpo pendurado, ele fica balançando, para lá e para cá, para lá e para cá....
Todos saem correndo e gritando porta a fora, eu fico, o vizinho volta a medo e me observa, contorno o corpo, com as costas dos dedos ( para não deixar digitais) verifico a pulsação: inexistente, está morto.
Olho seu rosto, crispado pela agonia. Suas mãos estão atadas com arame, a cadeira onde subiu caída.
Chamamos a polícia militar, eles vem rápido, eu e o vizinho somos detidos para averiguação, o cabo diz que não foi suicídio porquê as mãos estão amarradas, mostro-lhe a carta. Tenho medo de ser acusado de matá-lo. Somos interrogados, os depoimentos coincidem. Aguardamos a perícia que demora uma eternidade, quando vem, aliviados vemos a confirmação do suicídio e somos liberados.
Tenho pesadelos por um mês, com o Kiko enforcado.
Xuxa abandona a casa e vai morar com os pais em outro bairro. Alguns meses depois vem nos visitar.
Conta-nos que o advogado da empresa, um senhor de certa idade, tomou-a como sua protegida, deu-lhe um banho de loja, está fazendo-a estudar, diz que sua vida melhorou....

2 comentários:

  1. tétrico, trágico, tenebroso mas, infelizmente, muito comum. Bem escrito, mano.

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