O homem do passado transformado em figura central de um
universo lendário onde as aspirações nativistas encontram sua plena
realização.
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Certa visão antropológica salienta a influência do ambiente natural na formação das mentalidades.
A vida campeira, desprovida dos confortos da moderna tecnologia e
eivada de perigos cotidianos, estimulava os valores da coragem e da
bravura no universo da estância.
Da mesma forma, as amplidões infinitas dos campos contínuos
inspiravam ideias de liberdade. A planície despovoada determinou o
indivíduo social e tornou-se, conforme Regina Zilberman, "um
atributo que configura um ideal - o da vida independente, seja enquanto
indivíduo, justificando por que o gaúcho é um homem sem família, nem
laços afetivos, seja enquanto cidadão, na medida em que o herói sempre
está disposto a participar de conflitos armados que tenham como bandeira
a manutenção da autonomia política." (ZILBERMAN, 1980, p. 36).
A paisagem natural alimentou no imaginário do gaúcho a ideia de que seu universo era autossuficiente.
O gaúcho sentia-se como se bastasse a si mesmo, porque o meio
natural fornecia-lhe tudo o que lhe era necessário à sobrevivência.
A planície também lhe alimentou os ímpetos de ousadia pessoal e a
sensação de superioridade em comparação com a mesquinhez cotidiana
suportada pelas populações de outros lugares.
Assim forjou-se o mito da democracia rural gaúcha, baseada na
suposta igualdade entre peões e estancieiros e na liberdade que regia
as suas relações recíprocas.
Supostamente o peão nutria um sentimento de gratidão e lealdade em
relação ao estancieiro que lhe proporcionava uma oportunidade de
trabalho e moradia fixa e melhores condições de vida para si e sua
família.
Diz-se que a identidade regional gaúcha salienta-se no universo étnico e cultural
nacional, o tipo humano gaúcho se distingue dos demais tipos
brasileiros e torna-se visível onde quer que se confronte com um
habitante de outra parte do país.
A condição gaúcha seria vigorosa a ponto de que inspirar motejos, troça do tipo “Onde há dois gaúchos, funda-se um CTG”.
O gaúcho como personagem típico do sul do Brasil derivou, conforme
Maria Helena Martins, do “primitivo tropeiro - chefe de preadores e
contrabandistas de gado - que passa a proprietário de sesmarias pelas
graças da Coroa e força do seu mando e acaba visto, pelos cultores dos
pagos, como ‘monarca das coxilhas’, ‘político dos pampas’, quase
transformado em figura lendária pelos correligionários e o povo em
geral, sob o estímulo do cancioneiro popular" (MARTINS, 1980),.
Hoje, o passado é cultuado com saudosismo como uma realidade para
sempre perdida, de quando os ideais do cavaleiro audaz não se haviam
corrompido pelos valores típicos da sociedade capitalista de consumo e a
paisagem do pampa ainda não se modificara irremediavelmente sob o
influxo da mecanização do trabalho rural.
O homem cedeu lugar à máquina, trocou-se o cavalo pelo trator, os
peões foram expulsos do campo porque sua força não era mais necessária.
Agora, pouca gente basta para tocar a lida diária das fazendas.
A tendência entre cultores do tradicionalismo gaúcho, de elaborar um
conceito mítico do gaúcho do passado, transformado em lenda, figura
central de um universo igualmente lendário, onde as aspirações
nativistas encontram sua plena realização para rememorar suas raízes
culturais tradicionalistas.
Dom, 16 de Setembro de 2012 |
A família e o soldado na trágica história de guerra no início da origem nômade do gaúcho.
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A Bacia do Rio da Prata era disputada por portugueses e castelhanos.
Ali, se situava a fronteira mal definida entre as colônias americanas
dos impérios de Portugal e Espanha.
Nos campos do território que mais tarde chamar-se-ia Rio Grande do
Sul, os espanhóis introduziram gado bovino, o qual se dispersou e
reproduziu-se livremente.
A imagem original do gaúcho está ligada à preação do gado bravio.
O gaúcho era o nômade que perseguia as manadas sem dono para extrair-lhes os couros, os quais eram exportados para o rio Prata.
A terra e o gado eram riquezas disponíveis fornecidas pela natureza.
Enquanto não pertenciam nem a Portugal nem à Espanha, vigorou a sanha
do gaúcho coureador. Eram mestiços de índios, portugueses e espanhóis e
sobreviviam à margem da sociedade civilizada.
O gaúcho primitivo, portanto, era socialmente excluído, não tinha
família nem linhagem conhecida e não se vinculava a nenhum projeto de
civilização, depois de crescido o homem vivia isolado distante em campo
aberto.
Os gaúchos eram homens solitários, destituídos de riqueza material,
entregues à própria sorte e ocupados unicamente com a sua própria
sobrevivência diária num ambiente primitivo e sem nenhuma comodidade
doméstica.
Uma análise psicanalítica de Ana Maria Medeiros da Costa ressalta a
ausência da figura simbólica do pai e assim identifica uma perversão
original na formação do tipo humano gaúcho (cf. COSTA, 1999, p. 20).
O gaúcho primitivo, portanto, era um individualista irredutível.
Originalmente, o gaúcho ocupava-se com a rapinagem das riquezas da terra tanto em tempos de guerra quanto na paz.
Naqueles tempos, o gaúcho era carente de tudo, inclusive de família, por isso desconhecia noções de sociabilidade.
Era personagem trágica de uma história trágica: soldado compulsório
arregimentado pelos mandatários do momento à revelia da sua vontade,
“bucha-de-canhão”, massa de manobra dos caudilhos locais, presa de
guerra destinada à degola ou algoz embrutecido e politicamente
inconsciente que degolava seus semelhantes, gaúchos como ele, a mando do
seu chefe militar.
Essas são noções mais verossímeis que quaisquer versões românticas e
grandiloquentes que se construam em torno do verdadeiro perfil
psicológico e social do gaúcho primitivo.
Na origem da formação social gaúcha encontra-se a figura autoritária
do estancieiro, o latifundiário, dono exclusivo de terrenos sem fim e
dono presumido dos corpos e das almas de seus agregados.
Os gaúchos eram seus peões na paz e seus soldados na guerra,
garantiam a posse da terra para seu patrão e dedicava-lhe lealdade
canina, quem sabe inspirada na ausência de opção.
Ao gaúcho pobre não restava senão aderir à empresa do estancieiro,
porque a alternativa era evadir-se campo afora onde lhe aguardava a
morte pela fome ou por emboscada.
Às mulheres dos gaúchos pobres cabia procriar os peões e soldados do
futuro, os quais repetiriam a invariável tragédia de seus ancestrais.
Precisavam aturar diariamente a solidão, o cotidiano mesquinho e o
temor pela perda de seus companheiros, filhos e parentes ceifado pela
guerra, quando elas próprias não eram vítimas fatais dos soldados
inimigos.
A sorte cultural das origens era ser peão e soldado para sobreviver e
garantir a demarcação dos limites territoriais do estado do Rio Grande
do Sul.
Hoje se comemora um passado simbólico, quase lendário, porque o
contexto do mundo real mudou, mas as raízes culturais do gaúcho são
inesquecíveis.' |
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- Prezado Marcos!
ResponderExcluirSinto-me gratificado ao perceber seu interesse por temas que abordei sobre a história cultural do Sul.
Temos algo em comum gostar da pesquisa sobre nossas origens.
Vitor Hugo diz: O que arrasta o mundo não são as máquinas, mas são as ideias.
Um abraço de amigo
Gostei dos seus textos porquê desmistificam aquela imagem romântica do gaúcho, que os nativistas gostam de cultuar. Não tenho vergonha de dizer que tenho orgulho de minhas raízes missioneiras, mas longe de mim me iludir que os gaúchos primitivos eram heróis guerreiros, como você mesmo esclarece com tanta propriedade.
ExcluirAbraço amigo.