Li e gostei!
A morte é uma piada
Martha Medeiros
Morrer é ridículo. Você combinou de jantar com a namorada,
está em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem,
precisa autenticar um documento em cartório, colocar gasolina no carro e
no meio da tarde morre.
Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou
pela metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um
cliente?
Não sei de onde tiraram esta ideia: morrer. A troco?
Você passou mais de dez anos da sua vida dentro de um colégio estudando
fórmulas químicas que não serviriam pra nada, mas se manteve lá, fez as
provas, foi em frente. Praticou muita educação física, quase perdeu o
fôlego, mas não desistiu. Passou madrugadas sem dormir para estudar pro
vestibular mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer
da vida, cheio de dúvidas quanto à profissão escolhida, mas era hora de
decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente. De uma hora pra
outra, tudo isso termina numa colisão na freeway, numa artéria entupida,
num disparo feito por um delinquente que gostou do seu tênis. Qual é?
Morrer é um chiste. Obriga você a sair no melhor da festa sem se
despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter
tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida.
Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha
úmida no varal, e penduradas também algumas contas. Os outros vão ser
obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as
pistas que você deixou durante uma vida inteira.
Logo você, que sempre dizia: das minhas coisas cuido eu. Que pegadinha
macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma
rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a falar e talvez não
conclua o que pretende dizer. Não faz exames médicos, fuma dois maços
por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres magras e morre
num sábado de manhã.
Se faz check-up regulares e não tem vícios, morre do mesmo jeito. Isso é
para ser levado a sério?
Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser
bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não acompanha a mente,
e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada guardado nas
gavetas.
Ok, hora de descansar em paz. Mas antes de viver tudo, antes de viver
até a rapa? Não se faz.
Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas.
Morrer é um exagero. E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das
piadas. Só que esta não tem graça.