Recebi este e-mail de alguém que quero muito bem (minha tia Nara), estou republicando, pois é isto que vou passar nos próximos anos com meu querido e amado pai!
Lya Luft
Almocei com um amigo
semanas atrás e, quando perguntei a razão de seu abatimento, ele me
disse sem rodeios: "Esta manhã recebi o diagnóstico de minha mãe: é
Alzheimer". Imaginei essa senhora, alegre e vital, enveredando pelas
sombrias trilhas de uma enfermidade diabólica, e entendi a tristeza de
meu amigo como se fosse minha. Minha própria mãe morreu aos 90 anos,
depois de bem mais de uma década sendo paulatinamente envolvida na
mortalha mental e emocional do Alzheimer. Uma bela mulher ativa
tornou-se inexoravelmente uma estranha, raramente ostentando uma vaga
semelhança com a que fora minha mãe.
A doença se manifesta em
geral muito sutil: um esquecimento aqui, uma confusão ali. Uma atitude
estranha aqui, outra ali, intercaladas por fases de aparente
normalidade. A sociabilidade muda, os bons modos parecem esquecidos, o
controle do dinheiro se torna caótico, e é dificílimo interferir. Há
enorme resistência dos familiares em aceitar essa enfermidade. Para mim,
minha mãe sofria episódios naturais de esquecimento. Só o choque de um
dia a encontrar com uma pintura bizarra no rosto, ela tão recatada, me
fez cair na duríssima realidade. Ela já não sabia – ou em longos
períodos não sabia – o que estava fazendo. Algumas pessoas mais chegadas
tinham me avisado: eu havia me recusado a ver.
O que eu disse a meu
amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos daquela jornada: o
doente em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer? Muito
pouco, além de cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado,
medicado e tratado com carinho. Nada de criticar quando não sabe mais
quem somos, porque no fim não sabe mais quem ele próprio é. Quando já
não se porta à mesa como antes, quando faz "artes" às vezes perigosas,
ele precisa ser protegido, não mais ensinado. Não vai mesmo aprender.
Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos
nós: é o outro. Nesse processo, que em geral dura muitos anos, não há
nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o exercício da ternura,
da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois em breve
seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho, meu
querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e
sem que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu
cuidava como podia. Por fim, para a proteger de si própria, por
insistência dos médicos ela foi posta na melhor clínica que pude
assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que me assaltaram,
contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me convencer
de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem eu
tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das
centenas de visitas meu coração se partia outra vez.
Cuide de sua doente, eu
disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente nenhuma esperança vã,
pois tudo é triste, infinitamente desalentador. Uma coisa que ajuda, um
pouco, é tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer que ele
retorne ao nosso. Mas cuide também de si mesmo. Tente pegar-se no colo,
proteja-se da culpa insensata que nos espreita, siga sua vida. Na
natureza morrem árvores jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além
da última floração. Estamos mergulhados no mistério: isso torna a vida
possível mesmo quando não a entendemos.
Lya Luft é escritora
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